Catadora de cabelo!

“Ah”! Pretensão de voltar
Ao tempo do alvorecer,
Dos sonhos de minha meninice
Dos anos em que só corria!
Alegria, vigor, que sonhos,
Naqueles tempos fugazes,
À sombra das jabuticabeiras..”

Meu avô era abundantemente vaidoso. Gostava dos cabelos cortados a cada quinze dias, nada de tesoura, apreciava a navalha.
Sempre vinha o barbeiro, velho e magricela, com a feição própria das aves esfomeadas do sertão nordestino. Ficava por horas e horas a conversar, falava de um tudo, das brigas de vizinhos, das moças que se perderam, dos rapazes a aprontar e, sobretudo de política, que sempre foi a paixão de meu avô.
Enquanto sua voz esganiçada se projetava além dos muros de nossa casa, os cabelos fragmentavam-se, deslizando serenamente para o chão. Cabelos graúdos, másculos, alguns fios brancos a misturar-se no negro ébano.
Aos meus olhos tudo parecia encantador. Ficava sentada bem perto, observando. Havia uma força emanando daquele pequeno espaço, a sombra do cajueiro, força na expressão do olhar de meu avô. Nos gestos submissos do barbeiro, na sua maneira de projetar-se para baixo, formando uma corcunda muito próxima de uma reverencia. Um príncipe sendo galardoado. Um rei recebendo os cuidados de um servo.
O barbeiro dizia “Senhor Antônio este país precisa de homens como o senhor, abarrotado de sabedoria para governar”.
Meu avô balançava a cabeça como a dizer “Deixa... deixa.”. Mas seu semblante transmudava em felicidade, harmonizado com aquelas palavras, recordando os tempos em que participava ativamente da política.
Gostava por demais de passeata, sentia um arrepio quando o hino nacional se fazia ouvir. A multidão aquecia seu coração.
Os políticos vinham de longe conversar com ele. Queria sua opinião, convidar pra comício, festança de inauguração, batizados de apadrinhados, e assim se ia ao longe.
Meu avô andava léguas para ouvir um político falar, sentia que algo estava acontecendo, que a roda da vida se movia. Gostava dos discursos inflamados. Palavras de luta por dias melhores, igualdade de condições, direitos trabalhistas... direitos humanos e tudo que conduzisse o homem a sua dignidade.
Gostava muito de Getulio Vargas, nunca negou.
Eu fico a pequena distância, esqueço o pé de jabuticaba, deslembro das brincadeiras de roda, pois, assim que termina o corte, meu avô grita meu nome e como em um ritual diz “menina, sepulte estes cabelos no pé da bananeira.”
Eu tenho seis anos e nunca deixei cair nenhum fio.
Corro feliz a juntar a rica penugem de meu avô, amo alisá-los por entre os dedos, observar como são escuros, lustrosos, lisos, grossos.
Tomo muito cuidado, conhecedora da importância de minha tarefa, afinal desde o primeiro dia em que exerci minha função de catadora de cabelo ... Lembro que vovô pediu que me sentasse.
A sala parecia enorme e os móveis agigantaram.
Sentada no sofá, fiquei pacífica, mal respirava, imaginando que seria castigada a qualquer momento, (que travessura teria feito?), procurava pelos corredores de minha consciência infantil, mas nada, nenhuma pista, por fim desisti. Já não me lembrava mais.
Vovô com sua expressão grave, os braços nas costas e o corpo ereto, mesmo em sua cadeira de rodas, ainda sem as duas pernas, era um colosso. Olhou-me demoradamente.
Eu estava a ponto de chorar, quando finalmente ele amainou, parecendo manteiga derretendo em panela quente, e me confidenciou a importância de se enterrar os cabelos no pé da bananeira.
Contou-me em detalhes que os cabelos estão vivos, são partes de nós e mesmo cortados continuam vivos e a comunicar-se com os seus irmãos, que bravamente resistem no alto de nossas cabeças.
Assim, se jogarmos os cabelos cortados no lixo, eles ficarão aborrecidos e com certeza se queixarão com os cabelos-sobreviventes, logo haveria uma revolta completa e irrestrita.
São unidos os cabelos.
Meu avô dizia “Pense, cabelos que serviram tão bem, que não deixaram que o sol escaldante queimasse a pele da cabeça, que embelezou, que nos acompanhou por toda a vida, que nada pediu. Como podemos maltratá-los?.”
Meu avô gostava de seus cabelos lisos e felizes. Eu gostava de enterrá-los.




Comentários

  1. Beth,você nasceu para surpreender...!
    Que conto interessante e bem desenvolvido!
    Parabéns,amiga escritora!

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  2. Beth
    Obrigada por sua visita tão carinhosa ao Amadeirado.
    Nooooossa, minha linda, que resgate histórico tão lindo!Me reportei aos meus avós (paterno e materno) e ao meu próprio pai (quantas saudades). Adorei!Você é uma verdadeira contadora de estórias.
    Qdo tiver um tempinho vá conhecer meu outro blog, o Além das Nuvens, de frase e poemas pequenos. Tenho certeza que vc vai adorar!
    Bjkas cheias de carinho e uma semana iluminada pra você!!
    http://alemdasnuvens2011.blogspot.com

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  3. Olá....passando para te ler e te dar um abraço..rsrs..deixo aqui tbm desejos de felicidades pra ti.

    Bjossss

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  4. HOLA, BONITA. SI NO TE IMPORTA, VOY A SENTARME EN LA PLATEA DE TUS SEGUIDORES PARA PODER VER MÁS DE CERCA LO Q’ TIENES PARA DECIR ..

    P.D. EL PRÓXIMO 31 DE OCTUBRE TE ESPERO EN “EL HECHIZO” ;)
    BEIJO.

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  5. Interessante esse ofício de catadora e enterradora de cabelos. Encantou-me conhecer você um pouquinho mais nessa bela narração. Beijo, querida!

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  6. Muitíssimo obrigado Elizabeth!
    Gostei muito do teu texto (Catadora de cabelos)!
    Não sei explicar,mas tive uma agradavel sensação de acolhimento quando o li !
    Parabéns pra você também!!

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  7. Beth. Lindo conto.
    Inspira ternura, carinho, acolhimento. Parabéns!
    Bjs Verinha

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